sábado, 28 de março de 2020

Os médicos da alma, os puritanos e o aconselhamento bíblico!


Os puritanos viviam em função de Deus, a bíblia era o seu manual de regra e pratica. Foram os puritanos que desenvolveram o que se chama de movimento de aconselhamento bíblico, foram chamados de médicos da alma. Os pastores puritanos, conhecidos como médicos da alma, representam na historia da igreja “a primeira escola de aconselhamento bíblico”.[1] Contudo, para compreendermos o aconselhamento puritano precisamos entender como eles viam as Escrituras e como fundamentavam a sua visão sobre Deus, sobre o homem e sobre a vida.
A doutrina da inspiração das Escrituras era basilar e de vital importância para os puritanos. Eles criam que a Bíblia é inspirada por Deus e escrita por homens que tiveram seus conhecimentos e personalidades preservados, no entanto, supervisionados pelo Espírito Santo. Portanto, as Escrituras eram a Palavra de Deus autoritativa, eles entendiam que quando a Bíblia fala, Deus fala. E foi essa visão que determinou a caminhada dos puritanos na vida, na pregação e no aconselhamento. Descrevendo o pensamento que tinham com relação às Escrituras, Ken L. Sardes afirma;
Sua profunda convicção era de que a reverência para com Deus implicava em reverência para com as Escrituras, e servir a Deus significava obedecer às Escrituras. Para eles, portanto, não havia maior insulto ao criador que negligenciar Sua Palavra escrita: e de maneira contraria, não poderia haver ato de homenagem mais genuíno para com Deus que valorizá-La e atentar para o que ela diz.[2]
          Era o que a bíblia descrevia sobre o homem e suas necessidades que determinava a condução do aconselhamento bíblico, a Bíblia era suprema em tudo, inclusive na pratica do aconselhamento.[3] Podemos observar que a vida, a conduta, o culto e tudo mais na suas vidas eram dirigidos pela Bíblia, pois eles criam que Deus declara nas Escrituras tudo o que é preciso para se viver à vida de forma adequada. Podemos ver essa verdade expressa na Confissão de Fé de Westminster de forma clara;
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela.[4]

          Com relação à alma humana, o que era preciso saber estava nesta revelação: Deus criou o homem e sua alma, automaticamente conhecendo-a mais do que qualquer outro. Sendo assim, os conselheiros dessa época entendiam que o próprio Deus habilita aqueles que estão mais próximos a Ele, através do estudo da Palavra, a compreenderem melhor as necessidades da alma.
Deus, que criou a alma, e que morreu para redimir a alma, sabe melhor como tratar a alma. E aqueles homens que estão mais familiarizados com Deus são mais capazes de proporcionar cura para a alma. De fato, os Puritanos eram chamados “médicos da alma.” Thomas Watson escreveu um tratado intitulado “Pecado é uma Doença da Alma. Cristo é um Médico da Alma”, o qual está contido em The Sermons of Thomas Watson.[5] 

          O homem era corrompido na visão dos puritanos. O homem está separado do seu criador pelo pecado, e este é o seu grande problema, em Adão todos os homens se tornaram voluntariamente pecadores e separados de Deus. Não existi solução para o homem que não seja à volta, o retorno a esse Deus que o criou e sabe das suas necessidades. O Dr. Joel Beeke descrevendo a visão puritana sobre a necessidade do homem, escreve:
Deus é santo e separado de todo pecado, os pecadores não podem se aproximar dele sem um sacrifício santo. Ele não pode ser “o Santo” e permanecer indiferente ao pecado; pelo contrario, ele tem que punir o pecado. Visto que todos os homens são pecadores devido à queda trágica de Adão e as transgressões diárias, eles não podem por seus próprios esforços propiciar a Deus.[6]
          Na providência de Deus, o resgate foi efetuado em Cristo. Deus, que não poderia deixar o pecado impune, sacrificou seu Filho para remissão de pecados e efetuou o resgate de muitos. Para descrever essa verdade defendida pelos puritanos, Beeke cita a Ordem Holandesa Reformada da Ceia do Senhor que afirma; A ira de Deus contra o pecado é tão grande, que (em vez de o pecado ficar impune) Ele teve que puni-lo em seu Filho amado, Jesus Cristo, com a desprezível e dolorosa morte de cruz.[7] A justificação é a solução para os pecadores que estão mostos em seus delitos e pecados. Na visão puritana, a natureza humana estava completamente deformada, constitucionalmente caracterizada por inclinação ao mal.[8] Não havia outra solução para o homem que não fosse à intervenção de Deus através da regeneração.  
          Contudo, mesmo após a conversão, que tinha um significado de grande importância na mudança do homem e na sua cura, pois:
O puritanismo concentrava-se no ponto importante do estado da alma da pessoa. Quando uma alma é verdadeiramente unida a Cristo cada parte da pessoa – pensamentos, palavras e ações – estará sujeita a Palavra de Deus.[9]   
          Porém, mesmo diante de tal transformação, onde após a conversão o homem se submetia a Palavra de Deus, eles não acreditavam no coração corrompido do homem. E deveriam estar atentos para que não fossem enganados por ele.
Conhecendo também a desonestidade e a falsidade dos corações humanos decaídos, cultivavam humildade e auto-suspeita como atitudes constantes, examinando-se regularmente em busca dos pontos ocultos e males internos furtivos.[10] 

          O aconselhamento bíblico era fundamentado única e exclusivamente na Escritura. Como vimos acima, o entendimento de todas as coisas concernentes a vida terrena e espiritual era advinda das Escrituras. O homem era escravo do pecado, adorador de si mesmo, da criatura ao invés do Criador, e para solucionar esse problema era necessário a intervenção de Deus, pela Sua graça transformadora. Somente a graça é capaz de controlar uma vontade revoltada. As pessoas são depravadas, não porque têm uma vontade, mas porque possuem uma vontade que prefere o mal.[11]
          Por isso, era necessária a regeneração. O homem que havia se distanciado da ordem da criação, do seu Criador e buscava solução para seus problemas em si mesmos ou em circunstancias criadas por ele mesmo, precisava retornar a visão correta de Deus e do seu papel no mundo criado por Deus. A regeneração era a obra de providencia de Deus, na vida do homem, necessária para a sua verdadeira compreensão do mundo, de si mesmo e conseqüentemente, a sua felicidade dependia da regeneração.
Trata-se de uma redução da criatura revoltada à sua ordem verdadeira e feliz; portanto, os cristãos são criados em Cristo para boas obras. Entretanto, sem a transformação radial da natureza, o individuo permanece em sua idolatria.[12] 
          Para os puritanos o homem não conseguia raciocinar de forma adequada sem a regeneração.
Antes de ser alcançado pala graça, uma pessoa é caída e corrompida. Não vive racionalmente, pois não age de acordo com a verdade que, supõe-se, a mente assimila. Não vive com sensibilidade, pois sua vontade é guiada por sentimentos irracionais, e não pela verdade conhecida. A sua natureza moral foi distorcida; ela é essencialmente egocêntrica.[13] 
          O grande problema do homem na visão deles era o pecado, o pecado é o transferir da adoração a Deus para a adoração ao eu.[14] Foi e é o pecado que promove a separação do homem para com Deus. Por isso o pecado era tratado com muita seriedade. A natureza humana, por estar deformada, precisava da intervenção de Deus regenerando-a, mas, o problema não estava solucionado.
Mesmo depois da regeneração, o crente permanece um ser caído e desordenado devido às suas lutas constantes com sua velha natureza e com o pecado. Boston resumiu isso bem, dizendo: “Embora todo o homem seja santificado, nenhuma parte do homem é perfeitamente santificada nesta vida. Não é meia-noite para eles, como o é para o não-regenerado, nem meio-dia, como o é para os glorificados, e sim o crepúsculo, que é uma mistura de luz e trevas. Disso surge o combate entre a carne e o Espírito”.[15]
          É justamente nesse intervalo de tempo, entre a regeneração e a glorificação, chamado de santificação, que os puritanos praticavam o aconselhamento. A obra de Deus era indispensável para que o aconselhamento existisse, pois, o aconselhamento partia do entendimento de que a pessoa aconselhada havia se voltado para Deus e conseguia raciocinar de forma adequada, entendendo a verdade de Deus para sua vida. A partir dessa realidade o homem era confrontado, exortado a conformar a sua vida a realidade de Cristo. O aconselhamento era um meio que os pastores usavam para auxiliar suas ovelhas na santificação. Sendo esta, o tema prioritário nos puritanos.
O tema da santificação estava sempre em perspectiva. Quando os puritanos lidavam com a segurança da salvação, enfatizavam o que a pergunta 36 do breve Catecismo de Westminster também enfatiza: não podemos ter esperança de que o Espírito de Deus nos dará certeza jubilosa, se não estamos labutando dia a dia para viver uma vida santa. “Santidade ao Senhor” era o lema puritano para cada aspecto da vida, como era também o lema para cada aspecto da vida em comunidade.[16]
   
          A luta contra o pecado e contra a natureza pecaminosa é o combate de todo cristão, e os puritanos viviam essa luta com intensidade. Eles eram rigorosos na aplicação dos meios de graça na busca pela santidade. Acreditavam que Deus determinou alguns meios de graça para que a santificação alcançasse êxito de forma eficaz, eram diligentes na aplicação dessas disciplinas. Joel Beeke classifica essa disciplina espiritual dos puritanos em quatro grupos; particulares, familiares, coletivos e comunitários.[17] Em todas essas disciplinas, é notório a realidade de seu fundamento nas Escrituras. Cada uma dessas disciplinas é bíblica e pode ser usada de modo singular pelo Espírito Santo para promover a santidade nos crestes.[18] Essa luta e preocupação com o pecado e a natureza pecaminosa norteava o aconselhamento puritano.
Grande parte do aconselhamento puritano concentrava-se no problema do pecado por causa de sua extensão penetrante, seu caráter enganador e sua natureza pervertida. Reconhecendo o engano residente em cada coração, os conselheiros puritanos sabiam que aquilo que as pessoas menos queriam ouvir era o que elas mais precisavam ouvir, por conseguinte, a solução que os pastores puritanos ofereceram aos dilemas criados pelo domínio do pecado foi o principio da mortificação.[19]  
          O principio de mortificação era encontrado no processo de santificação, a mortificação era o matar as obras do corpo. Mortificar significa tirar toda força, o vigor e o poder do pecado, de modo que ele não possa agir por conta própria ou se impor na vida do crente.[20]
          Percebemos que toda a direção desses conselheiros estava atrelada a Escritura. A conversão (que é a união a Cristo) que é efetuado por Deus através da Sua Palavra e torna o homem sujeito a própria Palavra segundo o pensamento deles, deveria ser acompanhada pelo tratamento da Palavra. A Bíblia determinava todo o pensamento dos puritanos, com relação ao homem e suas necessidades, tudo era encontrado e buscado nas Escrituras. Existia verdadeira coerência entre o que eles acreditavam e aquilo que viviam. Visto que a Bíblia era a autoridade de Deus na terra, para dirigir o homem em todos os seus caminhos e decisões, eles realmente se curvavam para a voz de Deus.
Já que a Palavra de Deus consiste das próprias palavras de Deus, sua autoridade é exaustiva, estendendo-se por toda a área da fé e da pratica, incluindo tudo o que é necessário para a vida e a piedade.[21]

          Eles lhe atribuíam reverencia e obediência por ser a palavra de Deus autoritativa na terra para todas as questões.  
Para os puritanos, limitar a autoridade da Bíblia a questões religiosas violaria o principio de que toda a vida é religiosa. Quando os puritanos falavam da autoridade da Bíblia, davam-lhe longo alcance em vez de limitá-la a assuntos relativos à salvação. “não há uma condição em que possa cair um filho de Deus, para a qual não uma direção e uma regra na Palavra, em alguma medida apropriada.” escreveu Thomas Gouge.[22] 
          A vida deveria ser dirigida e direcionada por Deus através de Sua Palavra. Nenhum aspecto da vida era deixado de ser interpretado a luz das Escrituras. Eles citavam textos de prova e modelos bíblicos para quase todo tópico – economia, governo, família, igreja, vida, sexo, natureza, educação e muitos outros.[23] Diante dessa visão com relação à vida, é fácil entendermos por que o aconselhamento puritano era totalmente dirigido pela Bíblia. Conforme Richard Sibbes declarou; Não há qualquer coisa ou qualquer condição que aconteça ao cristão nesta vida sem que exista uma regra geral na Bíblia para tal, e essa regra é estimulada por meio do exemplo.[24] A Escritura era o fundamento pelo qual eles liam todo o mundo a sua volta, era Ela que determinava o que deveriam pensar, fazer e viver. Nenhuma autoridade externa tinha domínio sobre suas vidas, Deus falava nas Escrituras e isso era o bastante para eles. Quando reivindicavam a Escritura como a única autoridade final, é claro, rejeitavam as outras opções.[25] É importante ressaltar que os puritanos acreditavam na suficiência das Escrituras até mesmo na sua interpretação, eles criam que a Escritura é auto interpretativa, só se pode entender a Escritura pela Escritura. Isso demonstra o respeito que tinham e o temor ao interpretar as palavras de Deus. O apreço, o respeito, o temor, a responsabilidade na interpretação era derivado do entendimento que tinham da autoridade das Escrituras e isso trazia implicações diretas para todos os setores da vida, inclusive no aconselhamento.
William Ames afirmou: “As Escrituras não precisam de nenhuma explicação proveniente de luz exterior, especialmente quanto às coisas necessárias. Elas se auto-iluminam, e cabe ao homem ser diligente nessa descoberta”. Essa importante declaração revela a recusa do puritano em introduzir teorias psicológicas estranhas em sua interpretação do texto. A Bíblia era vista como fonte de toda direção, instrução, consolo, exortação e encorajamento divinos. O resultado disso foi um método de aconselhamento centrado nas Escrituras, em lugar de uma teoria carregada.[26] 
          
          Portanto, o aconselhamento era um veiculo usado pelos puritanos para auxiliar os crentes a se conformarem a imagem de Cristo, na ação do Espírito através da Palavra de Deus. Eles não estavam preocupados em entender o homem fora da realidade da Bíblia. Eles realmente estavam preocupados com a cura da alma das pessoas, mas o único veículo eficiente nessa cura era a palavra de Deus e a ação do Espírito através da mesma.
Os puritanos costumavam falar de cura de almas. Eles criam que com a Bíblia, adequadamente aplicada, uma pessoa poderia conduzir uma outra pessoa, com sucesso, ao longo do processo de santificação, de um modo que agradasse a Deus e que trouxesse paz à alma.[27] 
      
          Eles desenvolveram um sistema de aconselhamento forte e fundamentado na Escritura, diagnosticaram problemas e trataram pessoas com os mais diversos tipos de dificuldades.
Os puritanos desenvolveram maciça e profunda literatura sobre o largo espectro de problemas pessoas e pastorais. Escreveram sobre numerosos e detalhados casos de estudo. Tiveram um sistema sofisticado de diagnostico que penetravam nos motivos. Tiveram uma visão bem desenvolvida do processo a longo prazo, das tensões, das dificuldades e das lutas da vida cristã. Trataram cuidadosamente de temas uqe o século XX chamaria de dependência do sexo, comida ou álcool; a gama de problemas nos relacionamentos interpessoais do casamento e da família; depressão, ansiedade e ira; perfeccionismo e a tendência de agradar a outros; conflitos interpessoais; prioridades e gerencias do tempo e dinheiro; descrença e desvios do sistema de valores.[28]

          Os puritanos eram fortes e bem sucedidos no aconselhamento porque tinham uma ferramenta poderosa no tratamento da alma humana, a Escritura Sagrada. Contudo, toda essa força de alguma forma foi influenciada pela visão secular do aconselhamento nos anos subsequentes.



[1] MACARTHUR, John F.. Introdução ao aconselhamento bíblico: Um guia básico dos princípios e pratica de aconselhamento: Editora Hagnos; São Paulo-SP: 2004. p. 41.
[2] ibid. p. 43.
[3] ibid.
[4] Confissão de Fé de Westminster, cap. I. VI. Primeira parte da seção. 
[5] Rev. Don Kistler. Por que ler os puritanos hoje? Publicado pela Soli Deo Gloria Publications, Morgan, PA, 1999. p. 7
[6] BEEKE. Joel R.. Vivendo para a Glória de Deus, uma introdução a fé reformada: Editora Fiel; São José dos Campos-SP: 2010. p. 210.
[7] ibd.
[8] MacARTHUR, John F.. op cit, p. 53.
[9] HULSE, Erroll. Quem foram os Puritanos? E que eles ensinaram?: Editora PES; São Paulo-SP: 2004. p. 19
[10] PACKER, James I.. Entre os Gigantes de Deus, Uma visão puritana da vida cristã: Editora Fiel; São José dos Campos-SP: 1996. pp. 20,21.
[11] MACARTHUR, John F. op cit, p. 56.
[12] ibid. p. 54.
[13] BEEKE. Joel R.. op cit, pp. 216, 217.
[14] MACARTHUR, John F. op cit, p. 54.
[15] BEEKE. Joel R.. op cit, p. 217.
[16] Ibid. p. 214.
[17] Ibid. p. 223.
[18] Ibid.
[19] MACARTHUR, John F. op cit, p. 57.
[20] Ibid.
[21] Ibid. 45.
[22] RIKEN, Leland. Santos no Mundo: 2. Ed. - São Jose dos Campos, SP; Editora Fiel, 2113. p. 242.
[23] Ibid. p. 243.
[24] MACARTHUR, John F. op cit, p. 45.
[25] RIKEN, Leland. op cit, p. 238.
[26] MACARTHUR, John F. op cit, p. 44.
[27] EYRICH, Howard A. e Hines, William. Cura para o coração. Editora Cultura Cristã; São Paulo- SP: 2007. p. 13.
[28] POWLISON, David. Integração ou inundação. Religião de Poder. A igreja sem fidelidade bíblica e sem credibilidade no mundo. Editor: Michael S. Horton. Editora Cultura Cristã; São Paulo- SP: 1998. p. 165.

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