Os puritanos viviam em função de Deus, a bíblia era o seu manual de
regra e pratica. Foram os puritanos que desenvolveram o que se chama de
movimento de aconselhamento bíblico, foram chamados de médicos da alma. Os
pastores puritanos, conhecidos como médicos da alma,
representam na historia da igreja “a primeira escola de aconselhamento
bíblico”.[1] Contudo, para compreendermos o aconselhamento
puritano precisamos entender como eles viam as Escrituras e como fundamentavam
a sua visão sobre Deus, sobre o homem e sobre a vida.
A doutrina da inspiração das Escrituras era basilar e de vital
importância para os puritanos. Eles criam que a Bíblia é inspirada por Deus e
escrita por homens que tiveram seus conhecimentos e personalidades preservados,
no entanto, supervisionados pelo Espírito Santo. Portanto, as Escrituras eram a
Palavra de Deus autoritativa, eles entendiam que quando a Bíblia fala, Deus
fala. E foi essa visão que determinou a caminhada dos puritanos na vida, na
pregação e no aconselhamento. Descrevendo o pensamento que tinham com relação
às Escrituras, Ken L. Sardes afirma;
Sua
profunda convicção era de que a reverência para com Deus implicava em
reverência para com as Escrituras, e servir a Deus significava obedecer às
Escrituras. Para eles, portanto, não havia maior insulto ao criador que
negligenciar Sua Palavra escrita: e de maneira contraria, não poderia haver ato
de homenagem mais genuíno para com Deus que valorizá-La e atentar para o que
ela diz.[2]
Era o que a bíblia
descrevia sobre o homem e suas necessidades que determinava a condução do
aconselhamento bíblico, a Bíblia era suprema em tudo, inclusive na pratica
do aconselhamento.[3] Podemos observar que
a vida, a conduta, o culto e tudo mais na suas vidas eram dirigidos pela
Bíblia, pois eles criam que Deus declara nas Escrituras tudo o que é preciso
para se viver à vida de forma adequada. Podemos ver essa verdade expressa na
Confissão de Fé de Westminster de forma clara;
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para
a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente
declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela.[4]
Com relação à alma
humana, o que era preciso saber estava nesta revelação: Deus criou o homem e
sua alma, automaticamente conhecendo-a mais do que qualquer outro. Sendo assim,
os conselheiros dessa época entendiam que o próprio Deus habilita aqueles que
estão mais próximos a Ele, através do estudo da Palavra, a compreenderem melhor
as necessidades da alma.
Deus, que criou a alma, e que morreu para redimir
a alma, sabe melhor como tratar a alma. E aqueles homens que estão mais familiarizados
com Deus são mais capazes de proporcionar
cura para a alma. De fato, os Puritanos eram chamados “médicos da alma.” Thomas Watson escreveu um tratado
intitulado “Pecado é uma Doença da Alma. Cristo é
um Médico da Alma”, o qual está contido em The Sermons of Thomas Watson.[5]
O homem era corrompido na visão dos puritanos. O homem está
separado do seu criador pelo pecado, e este é o seu grande problema, em Adão
todos os homens se tornaram voluntariamente pecadores e separados de Deus. Não
existi solução para o homem que não seja à volta, o retorno a esse Deus que o
criou e sabe das suas necessidades. O Dr. Joel Beeke descrevendo a visão
puritana sobre a necessidade do homem, escreve:
Deus é santo e separado de todo pecado, os pecadores não
podem se aproximar dele sem um sacrifício santo. Ele não pode ser “o Santo” e
permanecer indiferente ao pecado; pelo contrario, ele tem que punir o pecado.
Visto que todos os homens são pecadores devido à queda trágica de Adão e as
transgressões diárias, eles não podem por seus próprios esforços propiciar a
Deus.[6]
Na providência de Deus, o resgate foi
efetuado em Cristo. Deus, que não poderia deixar o pecado impune, sacrificou
seu Filho para remissão de pecados e efetuou o resgate de muitos. Para
descrever essa verdade defendida pelos puritanos, Beeke cita a Ordem Holandesa
Reformada da Ceia do Senhor que afirma; A ira de Deus contra o pecado é tão
grande, que (em vez de o pecado ficar impune) Ele teve que puni-lo em seu Filho
amado, Jesus Cristo, com a desprezível e dolorosa morte de cruz.[7] A justificação é a
solução para os pecadores que estão mostos em seus delitos e pecados. Na
visão puritana, a natureza humana estava completamente deformada,
constitucionalmente caracterizada por inclinação ao mal.[8] Não
havia outra solução para o homem que não fosse à intervenção de Deus através da
regeneração.
Contudo, mesmo após a conversão, que
tinha um significado de grande importância na mudança do homem e na sua cura,
pois:
O puritanismo
concentrava-se no ponto importante do estado da alma da pessoa. Quando uma alma
é verdadeiramente unida a Cristo cada parte da pessoa – pensamentos, palavras e
ações – estará sujeita a Palavra de Deus.[9]
Porém, mesmo diante de tal transformação, onde após a
conversão o homem se submetia a Palavra de Deus, eles não acreditavam no
coração corrompido do homem. E deveriam estar atentos para que não fossem
enganados por ele.
Conhecendo também a desonestidade e a falsidade dos
corações humanos decaídos, cultivavam humildade e auto-suspeita como atitudes
constantes, examinando-se regularmente em busca dos pontos ocultos e males
internos furtivos.[10]
O
aconselhamento bíblico era fundamentado única e exclusivamente na Escritura.
Como vimos acima, o entendimento de todas as coisas concernentes a vida terrena
e espiritual era advinda das Escrituras. O homem era escravo do pecado,
adorador de si mesmo, da criatura ao invés do Criador, e para solucionar esse
problema era necessário a intervenção de Deus, pela Sua graça transformadora. Somente
a graça é capaz de controlar uma vontade revoltada. As pessoas são depravadas,
não porque têm uma vontade, mas porque possuem uma vontade que prefere o mal.[11]
Por
isso, era necessária a regeneração. O homem que havia se distanciado da ordem
da criação, do seu Criador e buscava solução para seus problemas em si mesmos
ou em circunstancias criadas por ele mesmo, precisava retornar a visão correta
de Deus e do seu papel no mundo criado por Deus. A regeneração era a obra de
providencia de Deus, na vida do homem, necessária para a sua verdadeira
compreensão do mundo, de si mesmo e conseqüentemente, a sua felicidade dependia
da regeneração.
Trata-se de uma redução da criatura revoltada à sua ordem
verdadeira e feliz; portanto, os cristãos são criados em Cristo para boas
obras. Entretanto, sem a transformação radial da natureza, o individuo
permanece em sua idolatria.[12]
Para os puritanos o homem
não conseguia raciocinar de forma adequada sem a regeneração.
Antes de ser alcançado
pala graça, uma pessoa é caída e corrompida. Não vive racionalmente, pois não
age de acordo com a verdade que, supõe-se, a mente assimila. Não vive com
sensibilidade, pois sua vontade é guiada por sentimentos irracionais, e não
pela verdade conhecida. A sua natureza moral foi distorcida; ela é
essencialmente egocêntrica.[13]
O
grande problema do homem na visão deles era o pecado, o pecado é o transferir da adoração a Deus para a adoração ao eu.[14] Foi e é o pecado que
promove a separação do homem para com Deus. Por isso o pecado era tratado com
muita seriedade. A natureza humana, por estar deformada, precisava da
intervenção de Deus regenerando-a, mas, o problema não estava solucionado.
Mesmo
depois da regeneração, o crente permanece um ser caído e desordenado devido às
suas lutas constantes com sua velha natureza e com o pecado. Boston resumiu
isso bem, dizendo: “Embora todo o homem seja santificado, nenhuma parte do
homem é perfeitamente santificada nesta vida. Não é meia-noite para eles, como
o é para o não-regenerado, nem meio-dia, como o é para os glorificados, e sim o
crepúsculo, que é uma mistura de luz e trevas. Disso surge o combate entre a
carne e o Espírito”.[15]
É justamente nesse intervalo de tempo, entre a
regeneração e a glorificação, chamado de santificação, que os puritanos
praticavam o aconselhamento. A obra de Deus era indispensável para que o
aconselhamento existisse, pois, o aconselhamento partia do entendimento de que
a pessoa aconselhada havia se voltado para Deus e conseguia raciocinar de forma
adequada, entendendo a verdade de Deus para sua vida. A partir dessa realidade
o homem era confrontado, exortado a conformar a sua vida a realidade de Cristo.
O aconselhamento era um meio que os pastores usavam para auxiliar suas ovelhas
na santificação. Sendo esta, o tema prioritário nos puritanos.
O tema da santificação estava sempre em
perspectiva. Quando os puritanos lidavam com a segurança da salvação,
enfatizavam o que a pergunta 36 do breve Catecismo de Westminster também
enfatiza: não podemos ter esperança de que o Espírito de Deus nos dará certeza
jubilosa, se não estamos labutando dia a dia para viver uma vida santa.
“Santidade ao Senhor” era o lema puritano para cada aspecto da vida, como era
também o lema para cada aspecto da vida em comunidade.[16]
A
luta contra o pecado e contra a natureza pecaminosa é o combate de todo
cristão, e os puritanos viviam essa luta com intensidade. Eles eram rigorosos
na aplicação dos meios de graça na busca pela santidade. Acreditavam que Deus
determinou alguns meios de graça para que a santificação alcançasse êxito de
forma eficaz, eram diligentes na aplicação dessas disciplinas. Joel Beeke
classifica essa disciplina espiritual dos puritanos em quatro grupos; particulares,
familiares, coletivos e comunitários.[17] Em todas essas
disciplinas, é notório a realidade de seu fundamento nas Escrituras. Cada
uma dessas disciplinas é bíblica e pode ser usada de modo singular pelo
Espírito Santo para promover a santidade nos crestes.[18] Essa luta e
preocupação com o pecado e a natureza pecaminosa norteava o aconselhamento
puritano.
Grande
parte do aconselhamento puritano concentrava-se no problema do pecado por causa
de sua extensão penetrante, seu caráter enganador e sua natureza pervertida.
Reconhecendo o engano residente em cada coração, os conselheiros puritanos
sabiam que aquilo que as pessoas menos queriam ouvir era o que elas mais
precisavam ouvir, por conseguinte, a solução que os pastores puritanos
ofereceram aos dilemas criados pelo domínio do pecado foi o principio da
mortificação.[19]
O principio de
mortificação era encontrado no processo de santificação, a mortificação era o
matar as obras do corpo. Mortificar significa tirar toda força, o vigor e o
poder do pecado, de modo que ele não possa agir por conta própria ou se impor
na vida do crente.[20]
Percebemos que toda a
direção desses conselheiros estava atrelada a Escritura. A conversão (que é a
união a Cristo) que é efetuado por Deus através da Sua Palavra e torna o homem
sujeito a própria Palavra segundo o pensamento deles, deveria ser acompanhada
pelo tratamento da Palavra. A Bíblia determinava todo o pensamento dos
puritanos, com relação ao homem e suas necessidades, tudo era encontrado e
buscado nas Escrituras. Existia verdadeira coerência entre o que eles
acreditavam e aquilo que viviam. Visto que a Bíblia era a autoridade de Deus na
terra, para dirigir o homem em todos os seus caminhos e decisões, eles
realmente se curvavam para a voz de Deus.
Já que a Palavra de Deus consiste das próprias
palavras de Deus, sua autoridade é exaustiva, estendendo-se por toda a área da
fé e da pratica, incluindo tudo o que é necessário para a vida e a piedade.[21]
Eles lhe atribuíam
reverencia e obediência por ser a palavra de Deus autoritativa na terra para
todas as questões.
Para os puritanos, limitar a autoridade da Bíblia a questões
religiosas violaria o principio de que toda a vida é religiosa. Quando os
puritanos falavam da autoridade da Bíblia, davam-lhe longo alcance em vez de
limitá-la a assuntos relativos à salvação. “não há uma condição em que possa
cair um filho de Deus, para a qual não uma direção e uma regra na Palavra, em
alguma medida apropriada.” escreveu Thomas Gouge.[22]
A vida deveria ser dirigida e
direcionada por Deus através de Sua Palavra. Nenhum aspecto da vida era deixado
de ser interpretado a luz das Escrituras. Eles citavam textos de prova e
modelos bíblicos para quase todo tópico – economia, governo, família, igreja,
vida, sexo, natureza, educação e muitos outros.[23] Diante
dessa visão com relação à vida, é fácil entendermos por que o aconselhamento
puritano era totalmente dirigido pela Bíblia. Conforme Richard Sibbes declarou;
Não há qualquer coisa ou qualquer condição que aconteça ao cristão nesta
vida sem que exista uma regra geral na Bíblia para tal, e essa regra é
estimulada por meio do exemplo.[24] A Escritura era o fundamento
pelo qual eles liam todo o mundo a sua volta, era Ela que determinava o que
deveriam pensar, fazer e viver. Nenhuma autoridade externa tinha domínio sobre
suas vidas, Deus falava nas Escrituras e isso era o bastante para eles. Quando
reivindicavam a Escritura como a única autoridade final, é claro, rejeitavam
as outras opções.[25] É
importante ressaltar que os puritanos acreditavam na suficiência das Escrituras
até mesmo na sua interpretação, eles criam que a Escritura é auto
interpretativa, só se pode entender a Escritura pela Escritura. Isso demonstra
o respeito que tinham e o temor ao interpretar as palavras de Deus. O apreço, o
respeito, o temor, a responsabilidade na interpretação era derivado do
entendimento que tinham da autoridade das Escrituras e isso trazia implicações
diretas para todos os setores da vida, inclusive no aconselhamento.
William Ames afirmou: “As Escrituras não precisam
de nenhuma explicação proveniente de luz exterior, especialmente quanto às
coisas necessárias. Elas se auto-iluminam, e cabe ao homem ser diligente nessa
descoberta”. Essa importante declaração revela a recusa do puritano em
introduzir teorias psicológicas estranhas em sua interpretação do texto. A
Bíblia era vista como fonte de toda direção, instrução, consolo, exortação e
encorajamento divinos. O resultado disso foi um método de aconselhamento
centrado nas Escrituras, em lugar de uma teoria carregada.[26]
Portanto,
o aconselhamento era um veiculo usado pelos puritanos para auxiliar os crentes
a se conformarem a imagem de Cristo, na ação do Espírito através da Palavra de
Deus. Eles não estavam preocupados em entender o homem fora da realidade da
Bíblia. Eles realmente estavam preocupados com a cura da alma das pessoas, mas
o único veículo eficiente nessa cura era a palavra de Deus e a ação do Espírito
através da mesma.
Os puritanos costumavam falar de cura de
almas. Eles criam que com a Bíblia, adequadamente aplicada, uma pessoa poderia
conduzir uma outra pessoa, com sucesso, ao longo do processo de santificação,
de um modo que agradasse a Deus e que trouxesse paz à alma.[27]
Eles desenvolveram um sistema de
aconselhamento forte e fundamentado na Escritura, diagnosticaram problemas e
trataram pessoas com os mais diversos tipos de dificuldades.
Os puritanos desenvolveram maciça e profunda literatura sobre o largo
espectro de problemas pessoas e pastorais. Escreveram sobre numerosos e
detalhados casos de estudo. Tiveram um sistema sofisticado de diagnostico que
penetravam nos motivos. Tiveram uma visão bem desenvolvida do processo a longo
prazo, das tensões, das dificuldades e das lutas da vida cristã. Trataram
cuidadosamente de temas uqe o século XX chamaria de dependência do sexo, comida
ou álcool; a gama de problemas nos relacionamentos interpessoais do casamento e
da família; depressão, ansiedade e ira; perfeccionismo e a tendência de agradar
a outros; conflitos interpessoais; prioridades e gerencias do tempo e dinheiro;
descrença e desvios do sistema de valores.[28]
Os
puritanos eram fortes e bem sucedidos no aconselhamento porque tinham uma
ferramenta poderosa no tratamento da alma humana, a Escritura Sagrada. Contudo,
toda essa força de alguma forma foi influenciada pela visão secular do
aconselhamento nos anos subsequentes.
Rev. Don Kistler.
Por que ler os puritanos hoje? Publicado pela
Soli Deo Gloria Publications, Morgan, PA, 1999. p. 7